Maria Paiva Lins
Quando a gente pensa em uma cidade, a imagem é clara: luzes, barulhos, prédios altos, movimento incessante de carros, máquinas e, às vezes,pessoas. Dá pra imaginar uma cidade, com toda carga histórica que esse termo carrega, que seja diferente disso?
Muitas vezes, minha experiência cotidiana me diz que não. Andar na cidade parece um desafio constante a tantas idéias grandes, coisas imensas, bem maiores do que eu. Andar e viver na cidade é um eterno jogo de estratégias, de melhores caminhos, pelo simples fato de eu ser mulher em uma sociedade machista. Uma grande partida de batalha naval, por eu ser pedestre e ciclista. Ou uma corrida incessante de fórmula 1, uma fórmula 1 engarrafada, se estou motorista. Uma sucessão de portas e janelas fechadas, se eu fosse negra (e, portanto, uma sucessão de portas e janelas abertas por eu ser branca). Andar na cidade nem é possível se eu não tiver dinheiro para a passagem.
Tudo isso transferido ao cenário melancólico de Brasília, e as coisas se tornam mais desesperadoras. Grandes espaços vazios, prédios bonitos, concreto branco por todos os lados, monumentos, a cidade-maquete resultado de um projeto modernista de exclusão, a cidade-maquete do apartheid social,. A cidade-maquete da centralização: todos os serviços “de qualidade”, os lazeres, os empregos, as quadras de futebol, as árvores, os parquinhos, estão no plano. O campo de concentração às avessas, como dizemos dentro do Movimento, já que todo mundo é obrigado a permanecer dentro das cidades- “satélites”, ao redor do “plano piloto'. As cidades satélites, tão parte do planejamento como a Brasília, capital da esperança.
Para a maioria das pessoas, entre percorrer esses espaços e apenas ouvir falar deles, existe uma distância significativa: a tarifa do ônibus, do metrô, do microônibus. Uma distância absurda.Uma distância, muitas vezes, insuperável. Isso quer dizer que, mesmo que Brasília fosse um espaço mais bacana, muita gente não poderia desfrutar dela, como de fato não o pode hoje.
Aí a gente vê que, pra cidade funcionar, a gente depende de transporte pra tudo. Pra ir pra escola, pro hospital, pro cinema, pro show da esplanada, pro trabalho. Aí a gente vê que, se a gente paga na hora de passar pela catraca, então a gente paga pra ir pra escola, mesmo que ela seja pública. Que a gente paga pra ir pro hospital, mesmo que ele seja público...
O argumento para a aprovação do passe livre estudantil, passa a ser, então, bastante óbvio: estudante não ganha dinheiro e precisa estudar. Se a gente precisa pagar o transporte, a escola deixa de ser pública e então esse direito básico deixa de ser respeitado. Educação e transporte andam aí juntos, inseparáveis.
Era nesse argumento que eu pensava quando entrei, no final de 2004, naquilo que na época se chamava Comitê Autônomo de luta Pelo Passe Livre e que hoje se chama Movimento Passe Livre -DF. Nessa época, por estranho que pareça hoje, essa proposta parecia uma loucura: “nunca vai dar certo”, “eu também quero tudo de graça, mas temos que trabalhar ” (essa é do Presidente Lula), “passe livre tem que ser só pra quem não tem dinheiro”, etc e tal. Mesmo que fosse já uma bandeira histórica do movimento estudantil, muita gente parecia não levá-la a sério e, principalmente, muita gente parecia achar impossível que ela se realizasse. Eu, particularmente, não a achava impossível... mas parecia muito, muito distante.
Agora, frente a frente como estamos com a aprovação do Passe Livre, as dúvidas, e as reflexões são outras.
Tudo isso me diz, antes de mais nada que, sim, dá pra imaginar uma cidade diferente. Dá pra imaginar uma cidade que não seja permeada por auto-pistas, da pra imaginar uma cidade que seja das e dos ciclistas, das e dos pedestres, uma cidade na qual eu possa caminhar livremente. Dá pra imaginar tudo isso porque o Passe Livre só tá aí pautado hoje pelos setores mais surreais da sociedade porque ele esteve em bandeiras, debates, faixas em órgãos ocupado, discussões. A primeira coisa que esse processo me diz, portanto, é que na luta pelo passe livre estudantil nós tomamos a força um dos pontos principais do que chamamos de Direito a Cidade: o direito de transformar esse espaço, de modificá-lo, de lutar pelos nossos desejos e necessidades.
Ao longo deste tempo, outras coisas começaram a fazer sentido pra gente: não é só uma questão de ir para a escola. Ou para o hospital. é questão de ir para onde quisermos. é questão de poder ir, voltar, mudar de idéia no meio do caminho, trocar de ônibus. é questão de poder pegar um grande circular e descer no mesmo ponto de partida, pela simples vontade de aproveitar o caminho pra pensar na vida. Porque o que faz sentido hoje é que o meu, o seu, o nosso direito de ir e vir seja irrestrito, incontrolável, ingovernável. Que ele não dependa de catraca ou de fronteiras.
É aí que o transporte deixou de ser visto por nós como um meio de acesso para bens essenciais, e passou a ser, ele mesmo, um direito. O direito, puro e simples, de me locomover. Ora, se a Cidade é nossa (e nós partimos desse pressuposto), então temos que poder andar para onde quisermos, na hora que quisermos.
Nossos desejos e bandeiras de luta dão então um salto. Um salto enorme, mas bastante lógico. Ninguém deve pagar a tarifa, porque direito não se compra como mercadoria. Como tudo mais que atualmente consideramos como direito, o transporte deve ser pago pelos impostos, e pelos impostos dos mais ricos, para funcionar como distribuição de renda. Aquilo que já falávamos lá por 2004, passou a ter mais sentido: o transporte beneficia a sociedade como um todo e assim não faz sentido que quem o usa pague por ele.
O nome dessa nova bandeira é simples: Tarifa Zero. Uma proposta feita pelo ex-secretário de transporte de São Paulo, Lúcio Gregori, em 1991-2, que chegou a ser implementada em um bairro da grande São Paulo. O governo passaria a fretar os ônibus das atuais empresas de transporte e então elas deixariam de ter qualquer coisa a ver com a passagem de ônibus. O serviço de transportes passaria a ser, portanto, um serviço público de fato.
Assim como o Passe Livre Estudantil, a Tarifa Zero também é vista como uma loucura. De “uso abusivo dos transportes” (essa é do Fidel Castro), “vagabundos e bebados desocupados invadindo os ônibus”, “tudo que é de graça é degradado pela população e isso vai piorar a frota dos ônibus”(como se ela fosse ótima agora que é paga), até “não adianta deixar o transporte gratuito, temos que lutar para que cada família possa pagar pelo transporte”, escutamos de tudo. Todos questionamentos que parecem estranhos quando enxergamos o transporte como um direito.
Assim como o Passe Livre Estudantil, a Tarifa Zero é uma proposta em construção, uma construção cotidiana feita na e pela luta. Nós mesmxs, que hoje levantamos essa bandeira, temos questões a responder, dúvidas em como aplicá-la. Esse não é um problema. Nunca nos propusemos a ser um grupo com respostas prontas para os problemas que vivemos, sempre nos preocupamos em caminhar perguntando por onde ir. Daqui a alguns anos, quando quem sabe estivermos acompanhando a votação da Tarifa Zero, a nossa discussão também vai ser outra.
Assim como o Passe Livre Estudantil, a Tarifa zero não resolve o problema da Cidade. Ela é um caminho, é a abertura de novas possibilidades, um passo a mais na vida sem catracas que queremos construir.
Como qualquer outra medida que não imploda o capitalismo, o machismo, o racismo, o especismo, e outras tantas opressões, ela é insuficiente. Isso não a torna, no entanto, uma proposta paliativa. Ela não é paliativa porque a reivindicamos a partir da concepção de que essa cidade é nossa, e que podemos caminhar por ela, transforma-la, geri-la. Não é paliativa porque conquistá-la depende de todo um processo de luta na qual a horizontalidade, o anticapitalismo, o anti-racismo, o feminismo, fazem parte do cotidiano.
A minha cidade ideal está muito, muito distante do que vejo e sinto hoje. E, por gigantes que todas essas estruturas pareçam, elas não são maiores do que o direito que move o mundo desde muito tempo: o de lutar pelas mudanças, o de combater as opressões, o de resistir. É apenas essa força que me faz ver o mundo como ele funciona e não querer desistir dele.
Quando a gente pensa em uma cidade, a imagem é clara: luzes, barulhos, prédios altos, movimento incessante de carros, máquinas e, às vezes,pessoas. Dá pra imaginar uma cidade, com toda carga histórica que esse termo carrega, que seja diferente disso?
Muitas vezes, minha experiência cotidiana me diz que não. Andar na cidade parece um desafio constante a tantas idéias grandes, coisas imensas, bem maiores do que eu. Andar e viver na cidade é um eterno jogo de estratégias, de melhores caminhos, pelo simples fato de eu ser mulher em uma sociedade machista. Uma grande partida de batalha naval, por eu ser pedestre e ciclista. Ou uma corrida incessante de fórmula 1, uma fórmula 1 engarrafada, se estou motorista. Uma sucessão de portas e janelas fechadas, se eu fosse negra (e, portanto, uma sucessão de portas e janelas abertas por eu ser branca). Andar na cidade nem é possível se eu não tiver dinheiro para a passagem.
Tudo isso transferido ao cenário melancólico de Brasília, e as coisas se tornam mais desesperadoras. Grandes espaços vazios, prédios bonitos, concreto branco por todos os lados, monumentos, a cidade-maquete resultado de um projeto modernista de exclusão, a cidade-maquete do apartheid social,. A cidade-maquete da centralização: todos os serviços “de qualidade”, os lazeres, os empregos, as quadras de futebol, as árvores, os parquinhos, estão no plano. O campo de concentração às avessas, como dizemos dentro do Movimento, já que todo mundo é obrigado a permanecer dentro das cidades- “satélites”, ao redor do “plano piloto'. As cidades satélites, tão parte do planejamento como a Brasília, capital da esperança.
Para a maioria das pessoas, entre percorrer esses espaços e apenas ouvir falar deles, existe uma distância significativa: a tarifa do ônibus, do metrô, do microônibus. Uma distância absurda.Uma distância, muitas vezes, insuperável. Isso quer dizer que, mesmo que Brasília fosse um espaço mais bacana, muita gente não poderia desfrutar dela, como de fato não o pode hoje.
Aí a gente vê que, pra cidade funcionar, a gente depende de transporte pra tudo. Pra ir pra escola, pro hospital, pro cinema, pro show da esplanada, pro trabalho. Aí a gente vê que, se a gente paga na hora de passar pela catraca, então a gente paga pra ir pra escola, mesmo que ela seja pública. Que a gente paga pra ir pro hospital, mesmo que ele seja público...
O argumento para a aprovação do passe livre estudantil, passa a ser, então, bastante óbvio: estudante não ganha dinheiro e precisa estudar. Se a gente precisa pagar o transporte, a escola deixa de ser pública e então esse direito básico deixa de ser respeitado. Educação e transporte andam aí juntos, inseparáveis.
Era nesse argumento que eu pensava quando entrei, no final de 2004, naquilo que na época se chamava Comitê Autônomo de luta Pelo Passe Livre e que hoje se chama Movimento Passe Livre -DF. Nessa época, por estranho que pareça hoje, essa proposta parecia uma loucura: “nunca vai dar certo”, “eu também quero tudo de graça, mas temos que trabalhar ” (essa é do Presidente Lula), “passe livre tem que ser só pra quem não tem dinheiro”, etc e tal. Mesmo que fosse já uma bandeira histórica do movimento estudantil, muita gente parecia não levá-la a sério e, principalmente, muita gente parecia achar impossível que ela se realizasse. Eu, particularmente, não a achava impossível... mas parecia muito, muito distante.
Agora, frente a frente como estamos com a aprovação do Passe Livre, as dúvidas, e as reflexões são outras.
Tudo isso me diz, antes de mais nada que, sim, dá pra imaginar uma cidade diferente. Dá pra imaginar uma cidade que não seja permeada por auto-pistas, da pra imaginar uma cidade que seja das e dos ciclistas, das e dos pedestres, uma cidade na qual eu possa caminhar livremente. Dá pra imaginar tudo isso porque o Passe Livre só tá aí pautado hoje pelos setores mais surreais da sociedade porque ele esteve em bandeiras, debates, faixas em órgãos ocupado, discussões. A primeira coisa que esse processo me diz, portanto, é que na luta pelo passe livre estudantil nós tomamos a força um dos pontos principais do que chamamos de Direito a Cidade: o direito de transformar esse espaço, de modificá-lo, de lutar pelos nossos desejos e necessidades.
Ao longo deste tempo, outras coisas começaram a fazer sentido pra gente: não é só uma questão de ir para a escola. Ou para o hospital. é questão de ir para onde quisermos. é questão de poder ir, voltar, mudar de idéia no meio do caminho, trocar de ônibus. é questão de poder pegar um grande circular e descer no mesmo ponto de partida, pela simples vontade de aproveitar o caminho pra pensar na vida. Porque o que faz sentido hoje é que o meu, o seu, o nosso direito de ir e vir seja irrestrito, incontrolável, ingovernável. Que ele não dependa de catraca ou de fronteiras.
É aí que o transporte deixou de ser visto por nós como um meio de acesso para bens essenciais, e passou a ser, ele mesmo, um direito. O direito, puro e simples, de me locomover. Ora, se a Cidade é nossa (e nós partimos desse pressuposto), então temos que poder andar para onde quisermos, na hora que quisermos.
Nossos desejos e bandeiras de luta dão então um salto. Um salto enorme, mas bastante lógico. Ninguém deve pagar a tarifa, porque direito não se compra como mercadoria. Como tudo mais que atualmente consideramos como direito, o transporte deve ser pago pelos impostos, e pelos impostos dos mais ricos, para funcionar como distribuição de renda. Aquilo que já falávamos lá por 2004, passou a ter mais sentido: o transporte beneficia a sociedade como um todo e assim não faz sentido que quem o usa pague por ele.
O nome dessa nova bandeira é simples: Tarifa Zero. Uma proposta feita pelo ex-secretário de transporte de São Paulo, Lúcio Gregori, em 1991-2, que chegou a ser implementada em um bairro da grande São Paulo. O governo passaria a fretar os ônibus das atuais empresas de transporte e então elas deixariam de ter qualquer coisa a ver com a passagem de ônibus. O serviço de transportes passaria a ser, portanto, um serviço público de fato.
Assim como o Passe Livre Estudantil, a Tarifa Zero também é vista como uma loucura. De “uso abusivo dos transportes” (essa é do Fidel Castro), “vagabundos e bebados desocupados invadindo os ônibus”, “tudo que é de graça é degradado pela população e isso vai piorar a frota dos ônibus”(como se ela fosse ótima agora que é paga), até “não adianta deixar o transporte gratuito, temos que lutar para que cada família possa pagar pelo transporte”, escutamos de tudo. Todos questionamentos que parecem estranhos quando enxergamos o transporte como um direito.
Assim como o Passe Livre Estudantil, a Tarifa Zero é uma proposta em construção, uma construção cotidiana feita na e pela luta. Nós mesmxs, que hoje levantamos essa bandeira, temos questões a responder, dúvidas em como aplicá-la. Esse não é um problema. Nunca nos propusemos a ser um grupo com respostas prontas para os problemas que vivemos, sempre nos preocupamos em caminhar perguntando por onde ir. Daqui a alguns anos, quando quem sabe estivermos acompanhando a votação da Tarifa Zero, a nossa discussão também vai ser outra.
Assim como o Passe Livre Estudantil, a Tarifa zero não resolve o problema da Cidade. Ela é um caminho, é a abertura de novas possibilidades, um passo a mais na vida sem catracas que queremos construir.
Como qualquer outra medida que não imploda o capitalismo, o machismo, o racismo, o especismo, e outras tantas opressões, ela é insuficiente. Isso não a torna, no entanto, uma proposta paliativa. Ela não é paliativa porque a reivindicamos a partir da concepção de que essa cidade é nossa, e que podemos caminhar por ela, transforma-la, geri-la. Não é paliativa porque conquistá-la depende de todo um processo de luta na qual a horizontalidade, o anticapitalismo, o anti-racismo, o feminismo, fazem parte do cotidiano.
A minha cidade ideal está muito, muito distante do que vejo e sinto hoje. E, por gigantes que todas essas estruturas pareçam, elas não são maiores do que o direito que move o mundo desde muito tempo: o de lutar pelas mudanças, o de combater as opressões, o de resistir. É apenas essa força que me faz ver o mundo como ele funciona e não querer desistir dele.
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